sábado, 26 de janeiro de 2013

Saint-Exupéry e a necessidade de criar laços

Por Fernando Rodrigues Batista

"O desarraigo é a enfermidade mais maligna das sociedades humanas”.
Simone Weil

Conforme acentuou Jean Ousset, a revolução está em todas as coisas: nas coisas do espírito, da cultura, da religião. Em todas elas a Revolução dissolve tudo o que pode ser substancia de verdade e não conserva mais que o aspecto superficial, o aspecto evolutivo, o aspecto perpetuamente cambiante – e, portanto, ‘contestável’ -, dos seres e das coisas.
Frente a esta cultura, contra esta cultura, temos em primeiro lugar, temos acima de tudo, que opor a paixão pela verdade, condição elementar do amor ao bem e persecução incansável do belo.
Nesse sentido, reputamos indispensável consoante vaticinou Louis Daujarques, recobrar aquela prudência, que não é a de ontem nem a de amanhã, senão de sempre, e talvez voltemos a encontrar nesses caminhos eternos muitos mestres de seu tempo. A ela corresponde fazer brilhar novamente e dar vida a Bourget, a Barres, a Daudet como a Claudel, a Bernanos e a Péguy, a Chesterton e a Saint-Exupéry.
Hoje estamos presenciando, segundo Gustave Thibon, a agonia da Cidade dos homens. O liberalismo, ao isolar os indivíduos, e o estatismo, ao reagrupá-los em vastos conjuntos artificiais e anônimos, transformaram a sociedade em um imenso deserto cujas cegas areias são arrebatadas nos torvelinhos do vento da história. E o homem, vítima deste fenômeno de erosão, não tem já morada no espaço (se vê, ao mesmo tempo, na prisão e no desterro), nem ponto de referencia em um tempo pelo que corre cada vez mais depressa sem saber aonde vai. Assim, o homem "perde o essencial sem dar-se conta do que perdeu”. (Saint-Exupéry)
Em um mundo que se faz deserto, como aludia o próprio Saint-Exupéry, dominado por tecnocratas, ou pela governança, tema tão afeito aos pensadores espanhóis como o saudoso Juan Vallet de Goytisolo, Dalmacio Negro e Miguel Ayuso, se faz necessário trazer novamente à tona uma filosofia do arraigo.
Arraigar significa criar raízes. Se observarmos a natureza humana, a necessidade de criar raízes é patente. O homem é um ser inteligente, não pode tomar as coisas que lhe rodeiam como um animal ou qualquer outro ser que se move somente pelos instintos. Necessita encontrar o sentido das coisas, transcender para além de sua mera aparência; necessita também dar um sentido à sua vida, de tal modo que o homem não pode desenvolver-se plenamente em uma sociedade com a qual não se identifica, com a qual não tenha nenhum laço e que ao mesmo tempo lhe impossibilite de criar laços permanentes com as coisas ao seu entorno. Assim, como faz notar Rafael Gambra, o homem vem a ser entrega e intercambio com a sociedade ao seu entorno, assim cria suas raízes. Raízes familiares, ideológicas, patrimoniais. Essas raízes são como o tecido que forma a vida de um homem e que permanece uma vez que ele desapareça. Quando o homem nasce, não nasce isolado. Nasce em um entorno determinado, de pais determinados, e herda uma bagagem de costumes, idéias, caracteres etc. Como bem frisou Juan Vallet de Goytisolo, seguindo a esteira de Francisco Elias de Tejada, o homem é herdeiro, não só pelo sangue, senão também por uma série de aquisições de ordem moral, intelectual e material. Esta herança, estes conhecimentos em profundidade, que recebe o homem como fruto de experiências de gerações anteriores, os vem obtendo primordialmente da família e nas entidades humanas menores intermediárias, em forma de tradições adequadas ao meio natural onde se encontra arraigado. Costumes que encarnam saberes herdados, dotando-os de penetração e de pressão social para dar-lhes firmeza e eficiência.
Como sublimemente ensina Simone Weil, o arraigo é talvez a mais importante e talvez a mais desconhecida necessidade da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade real, que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do porvir. Participação natural, produzida automaticamente pelo lugar, o nascimento, a profissão, o entorno. Cada ser humano tem necessidade de ter múltiplas raízes. Tem precisão de receber quase a totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos ambientes que naturalmente forma parte.
E é por isso que, como preconizou Rafael Gambra em seu livro “El silencio de Dios”, cabe conceber a vida humana como uma criação de laços (cognoscitivo, volitivos, ativos), entre o Eu e as coisas. Tais laços são, para o sujeito, compromissos (engagements), e a respeito das coisas (apprivotsement). Cada homem vem a fazer o seu próprio mundo, sua vida; e as coisas se fazem assim substância humana. Deste modo, a Cidade – o habitáculo humano – há de ser criada pelo que Saint-Exupéry chama o fervor, isto é, o esforço e a entrega guiados pelo amor, em cuja obra o sujeito intercambia sua vida com sua criação e esta lhe sobrevive e fecunda e alberga a vida dos que lhe seguirão.
Pelo contrário, continua Rafael Gambra, pelo desarraigo perde o homem ‘o bem mais profundo, aquilo que constitui propriamente sua existência de homem: o laço misterioso e cordial com as coisas de seu mundo, pelo qual estas se fizeram valiosas para ele e outorgam arraigo e sentido para a sua vida. O empobrecimento da personalidade, a trivialização dos desejos e a massificação humana são suas conseqüências visíveis.
Os laços afetivos que unem o homem de hoje com os seres e as coisas, são tão pouco sensíveis, tão pouco densos que não se sente sua ausência como antes”, disse Saint-Exupéry em “Carta a um refém”.
O homem se identifica com as coisas concretas que o rodeiam, de tal modo que não as pode substituir por nenhuma outra, por muito parecida que seja.  É o que tão admiravelmente expressa Saint-Exupéry na conversa da raposa com o pequeno príncipe, aonde conclui dizendo: “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos.” “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante.” “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
É por isso que o homem pode chegar a morrer por estas coisas que o rodeiam, porque a perda delas, uma vez que convertida em raízes, significam para ele mais que a própria vida. O ideal, pois, para um pleno desenvolvimento do homem, seria uma sociedade que fomentasse a criação desses vínculos. E, sem embargo, vemos que todas as teorias políticas modernas fomentaram exatamente o contrário.
Faz já algum tempo uma autora lembrou que um famoso poeta descreveu a sociedade atual com a seguinte frase: “Um mundo como uma arvore destroçada, uma geração desarraigada, uns homens sem mais destino que escorar ruínas...”, e salientou que a nós corresponde lutar para que, com a ajuda de Deus, se converta no ideal que descreveu Saint-Exupéry em sua Cidadela: “Comunidade de laços, de lembranças, de esperanças, onde cada passo e cada tempo têm seu sentido”. 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Joaquim Nabuco: a infância em Massangana

Joaquim Nabuco
O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber... Pela minha parte acredito não ter nunca transposto o limite das minhas quatro ou cinco primeiras impressões... Os primeiros oito anos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha formação, instintiva ou moral, definitiva... Passei esse período inicial, tão remoto, porém mais presente do que qualquer outro, em um engenho de Pernambuco, minha província natal. A terra era uma das mais vastas e pitorescas da zona do Cabo... Nunca se me retira da vista esse pano de fundo que representa os últimos longes de minha vida. A população do pequeno domínio, inteiramente fechado a qualquer ingerência de fora, como todos os outros feudos da escravidão, compunha-se de escravos, distribuídos pelos compartimentos da senzala, o grande pombal negro ao lado da casa de morada, e de rendeiros, ligados ao proprietário pelo benefício da casa de barro que os agasalhava ou da pequena cultura que ele lhes consentia em suas terras. No centro do pequeno cantão de escravos levantava-se a residência do senhor, olhando para os edifícios da moagem, e tendo por trás, em uma ondulação do terreno, a capela sob a invocação de São Mateus. Pelo declive do pasto árvores isoladas abrigavam sob sua umbela impenetrável grupos de gado sonolento. Na planície estendiam-se os canaviais cortados pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e cipós, que sombreavam de lado a lado o pequeno rio Ipojuca. Era por essa água quase dormente sobre os seus largos bancos de areia que se embarcava o açúcar para o Recife; ela alimentava perto da casa um grande viveiro, rondado pelos jacarés, a que os negros davam caça, e nomeado pelas suas pescarias. Mais longe começavam os mangues que chegavam até à costa de Nazaré.

Durante o dia, pelos grandes calores, dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte, das grandes tachas em que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros da planície transformavam-se em uma poeira de ouro; a boca da noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradável e balsâmica, depois o silêncio dos céus estrelados, majestoso e profundo. De todas essas impressões nenhuma morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga. Eu por vezes acredito pisar a espessa camada de canas caídas da moenda e escuto o rangido longínquo dos grandes carros de bois...

Emerson quisera que a educação da criança começasse cem anos antes dela nascer. A minha educação religiosa obedeceu certamente a essa regra. Eu sinto a idéia de Deus no mais afastado de mim mesmo, como o sinal amante e querido de diversas gerações. Nessa parte a série não foi interrompida. Há espíritos que gostam de quebrar todas as suas cadeias, e de preferência as que outros tivessem criado para eles; eu, porém, seria incapaz de quebrar inteiramente a menor das correntes que alguma vez me prendeu, o que faz que suporto cativeiros contrários e menos do que as outras uma que me tivesse sido deixada como herança. Foi na pequena capela de Massangana que fiquei unido à minha.

As impressões que conservo dessa idade mostram bem em que profundezas os nossos primeiros alicerces são lançados. Ruskin escreveu esta variante do pensamento de Cristo sobre a infância: "A criança sustenta muitas vezes entre os seus fracos dedos uma verdade que a idade madura com toda sua fortaleza não poderia suspender e que só a velhice terá novamente o privilégio de carregar." Eu tive em minhas mãos como brinquedos de menino toda a simbólica do sonho religioso. A cada instante encontro entre minhas reminiscências miniaturas que por sua frescura de provas avant la lettre devem datar dessas primeiras tiragens da alma. Pela perfeição dessas imagens inapagáveis pode-se estimar a impressão causada. Assim eu via a Criação de Miguel Ângelo na Sistina e a de Rafael nas Loggie³, e, apesar de toda a minha reflexão, não posso dar a nenhuma o relevo interior do primeiro paraíso que fizeram passar diante dos meus olhos em um vestígio de antigo Mistério popular. Ouvi notas perdidas do Angelus na Campanha romana, mas o muezzin íntimo, o timbre que soa aos meus ouvidos à hora da oração, é o do pequeno sino que os escravos escutavam com a cabeça baixa, murmurando o Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Este é o Millet inalterável que se gravou em mim. Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me dele, tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou diante de mim, verde e transparente como um biombo de esmeralda, um dia que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros, me achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra líquida e movente... Foi essa onda, fixada na placa mais sensível do meu kodak infantil, que ficou sendo para mim o eterno clichê do mar. Somente por baixo dela poderia eu escrever: Thalassa! Thalassa!

Meus moldes de idéias e de sentimentos datam quase todos dessa época. As grandes impressões da madureza não têm o condão de me fazer reviver que tem o pequeno caderno de cinco a seis folhas apenas em que as primeiras hastes da alma aparecem tão frescas como se tivessem sido calcadas nesta mesma manhã... O encanto que se encontra nesses eidoli grosseiros e ingênuos da infância não vem senão de sentirmos que só eles conservam a nossa primeira sensibilidade apagada... Eles são, por assim dizer, as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um instrumento que não existe mais em nós...

Joaquim Nabuco

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- John Ruskin, escritor inglês que se dedicou especialmente a assuntos de estética em que teve grande influência na era vitoriana;
- Muezzin, árabe, anunciador muçulmano da hora da oração;
- Thalassa, exclamação de alegria dos dez mil gregos dirigidos por Xenofonte quando viram o mar, após dezesseis meses de retirada;
- Eidoli, grego, plural de eidolon; figura, imagem.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O Estudante Alsaciano

Acácio Antunes
"A poesia O Estudante Alsaciano vive o drama íntimo de um aluno francês cuja escola passara a ser alemã com a ocupação da Alsácia pelos prussianos, na guerra de 1870. A poesia descreve as reações do seu patriotismo, a incomodação que lhe atormenta o espírito, o grande apego e o amor, antes desapercebidos, que ele, só então, verificava ter pela sua escola, na profunda amargura de perdê-la, de despedir-se dela em definitivo, para tornar-se aluno de um professor alemão, passando a estudar em língua alemã."
- Gen. A. de Lyra Tavares



Antigamente, a escola era risonha e franca,
Do velho Professor as cãs, a barba branca,
Infundiam respeito, impunham simpatia,
Modelando as feições do velho, que sorria
E era como criança em meio das crianças.
Como ao pombal correndo em bando as pombas mansas,
Corriam para a escola; e nem sequer assomo
De aversão ou desgosto, ao ir para ali como
Quem vai para uma festa. Ao começar o estudo,
sem um pesar, abandonavam tudo,
E submissos, joviais, nos bancos em fileiras,
Iam todos sentar-se em frente das carteiras,
Atentos, gravemente, uns pequeninos sábios.
E o velho professor, tendo sempre nos lábios
Uma frase a animar aquele bando imbele,
Ia ensinando a este, ia emendando aquele,
De manso, com carinho e paternal amor.

Por fim, tudo mudou. Agora o professor,
Um grave pedagogo, é austero e conciso;
Nunca os lábios lhe abriu a sombra de um sorriso.
E aos pequenos mudou em calabouço a escola!
Pobres aves, sem dó, metidas na gaiola!
Lá dentro, hoje, o francês é língua morta e muda:
Unicamente o alemão ali se fala e estuda,
São alemães o mestre, os livros e a lição;
A Alsácia é alemã; o povo é alemão,
Como na própria pátria é triste ser proscrito!
Frequentava também a escola um rapazito
De severo perfil, enérgico, expressivo,
Pálido, magro, o olhar inteligente e vivo
Mas de íntima tristeza aquele olhar velado
Modesto no trajar, de luto carregado...
-Pela Pátria, talvez! - Doze anos só teria.
O mestre, de uma vez, chamou-o a geografia:

-"Diz-me cá, rapaz... Que é isso? estás de luto?
Quem te morreu?"
-"Meu pai, no último reduto,
Em defesa da Pátria!"

-"Ah! sim, bem sei, adiante...
Tu tens assim um ar de ser bom estudante,
Quais são as principais nações da Europa? Vá!"

-"As principais nações são... a França..."
-"Hein? que é lá?...
Com que então, a França é a primeira? Bom começo!
De todas as nações, pateta, que eu conheço,
Aquela que mais vale, a que domina o mundo,
Nas grandes concepções e no saber profundo,
Em riqueza e esplendor, nas letras e nas artes,
Que leva o seu domínio às mais remotas partes,
A mais nobre na paz, a mais forte na guerra,
De onde irradia a ciencia a iluminar a terra,
A maior, a mais bela, a que das mais desdenha,
Fica-o sabendo tu, rapaz, é a Alemanha!"

Ele sorriu com ar desprezador e altivo,
E a cabeça agitou num gesto negativo.
E tornou com voz firme:

-"A França é a primeira!"
O mestre furioso, ergue-se da cadeira,
Bate o pé e uma praga enérgica se lhe escapa.

-"Sabes onde está a França? Aponta-me no mapa!"
O aluno ergue-se então, os olhos fulgurantes,
O rosto afogueado; e enquanto os estudantes
Olham cheios de assombro aquele destemido,
Ante o mestre, nervoso, audaz e comovido,
Tímido feito herói, pigmeu tornado atleta,
Desaperta febril, a sua blusa preta,
E batendo no peito, impávida, a criança
Exclama:

-"É aqui dentro! aqui é que está a França!"

Acácio Antunes

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Procuras um amigo?

Disse então a raposa ao principezinho:
- Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me disse ela.


- Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos, Se tu queres um amigo, cativa-me!
- Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto...
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
- Que é um rito? perguntou o principezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa, É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias!


Le Petit Prince
Antoine Saint-Exupèry

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Tolerância, por Jackson de Figueiredo

Há poucos dias, a uma esquina do planeta, que tanto pode ser Portugal como as mais próximas da Garnier, víamos - um dos homens mais afortunados deste rico país e o modesto escrevinhador destas linhas - passar, rolar pelo asfalto da Avenida, sobre carros de luxo, alguns dos astros mais brilhantes do nosso sistema social, homens da finança e homens da política, famosos condotieri do mercado e experimentados coronéis da administração. Certo, escapou-me alguma blasfêmia de pessimista ou, menos que isto, uma simples frase irreverente, dessas que são o último recurso de uma conversa desentendida, quase a morrer.
O amigo ilustre, porém, como que se reanimou aquele golpe de acaso. Fulgiram-lhe os olhos, já de si luminosos, de luz nova e singularmente penetrante. Sorriu depois, quase sem esconder que ali estava apiedado de mim e, como houvera pouco antes atentado na capa de um livro que eu tinha debaixo do braço, disse-me despedindo-se: - "O que V. precisa é ler e reler este livro, ou melhor, gravar bem o seu título no coração."

O livro não chegava a ser uma dessas obras geniais com que vai o espírito brasileiro refazendo a cultura ocidental, arruinada pelas brutais negações da guerra e do bolchevismo... Era um pequeno tratado sobre a tolerância, espécie de cartilha ou de guia prático aos que vivem mergulhados no terror de parecerem menos aptos aos climas morais contemporâneos...

Eis aí até que ponto têm decaído no Brasil a inteligência e o caráter, este principalmente. Quem mais o tem, tem medo dele como de uma víbora azougada. Não o quer ver respirar... E a prova é que, quanto pode, concorre para a formação de uma atmosfera inimiga de todo caráter, porque inimiga de toda convicção. Como foi possível esse estado de coisas, é o que é difícil explicar, mas fato contra o qual não valem argumento de qualquer espécie é que, se temos baixado moralmente, se o nosso nível social e político é cada vez mais inferior, é sempre em proporção ao grau de tolerância com que vimos encarando as coisas mais repugnantes e mais despudoradamente implantadas no seio da nossa vida de povo em pleno uso da bandeira, generais, cornetas e tambores, tal e qual os povos que se estimam livres e amantes da liberdade. Fizemo-nos tão furiosamente o país da tolerância que quase já somos como uma casa dela... e se a bandeira não é como luz verde à porta da nossa incrível boa fé, é porque não há quem a possa olhar sem recordar o sangue que por ela já foi derramado, em atos de intolerância da nossa ofendida dignidade...

Não faz muito tempo, deu O País uma resposta curta e incisiva a umas tantas carpideiras da nossa imprensa, que só na tolerância vêem a possibilidade de salvar-se esta nação da horrível queda no clássico abismo da tirania. Nada mais fez aquele matutino que apresentar a essa piedosíssima gente a fotografia de um certo general mexicano "pouco antes" de ser fuzilado "pouco depois" de ser vencido como chefe revolucionário.

Dir-se-á que nem por estes e outros rigores não cansa o espírito da Revolução naquela República. Mas além de serem muito sérias e muito graves as causas da permanente agitação na vida política do México, uma coisa, desde logo, se patenteia como vantagem àquele país, da incontestável dureza de ânimo dos seus homens: as revoluções por lá não desmoralizam generais nem políticos; implicam vencedores e vencidos, que não se acovardam nem diante da derrota, nem diante dos juízes da vitória. É claro que, se no Brasil, os fazedores de revolução tivessem a certeza de que a derrota seria a morte ou, pelo menos, o exílio, em menor número as fariam, e jamais dessas que, vinte dias depois de abortadas, nada mais pedem que um baile sem máscaras e um foguetório de lágrimas reconciliadoras. Em política, quando o que se visa é o bem do país, se a reconciliação pode ser possível e conseqüência de circunstâncias imperiosas, o que não se concebe é a dignidade esmolando o perdão, porque dignidade pode existir até no erro, mas jamais usará a linguagem da covardia.

E não reparam também esses propugnadores da tolerância como princípio da nossa vida política que são eles próprios os primeiros que negam a esta toda a nobreza das convicções e toda a beleza das verdades praticadas. Realmente, "a tolerância sempre teve por objeto um mal". "Tolerar o bem, tolerar a virtude, seriam expressões monstruosas." É isto o que diz a sabedoria dos séculos. Por conseguinte, que é que se pede, entre nós, com essa desenfreada apologia da tolerância, senão o carinho para todos os sofismas e todos os crimes, quando vencidos, ou o império deles reconhecido legítimo, como possibilidade?

Se ela é somente a serenidade da justiça, a benignidade do trato, o respeito às pessoas e aos direitos naturais do ser humano, é evidente que não são os fazedores de revolução em nosso país os que dão exemplo dela, e são eles os menos capazes de a definirem e de ajuizarem do grau em que a merecem. Também os céticos, os que não entram em luta alguma, não podem ser ouvidos sobre o assunto. A tolerância neles é, como diz Vermeersch, cegueira, ingurgitamento, paralisia. "Que coute la tolerance à celui que n'interesse aucune grande cause?"

No domínio da vida contemporânea, dada a gravidade dos problemas agitados, é claro que é muito mais útil à sociedade um homem fanático de péssimas idéias do que um indiferente, isto é, melhor o veneno que mata violentamente, mas a cujos primeiros sintomas é possível acudir com o antídoto indicado pelo bom senso e a tradição, do que esse lívido elixir de podridão, que é o ceticismo. Não, não serão esses erros políticos que nos arrastarão à ruína moral, que, de fato, parece apontar-nos o destino... essa ou aquela forte afirmação de personalidade, que não faz do perdão cantiga ou negócio. Pelo contrário, o que o Brasil precisa é de convicções, é de vontades férreas, é de indivíduos capazes de perdoar, sim, mas antes de tudo capazes de justiça e destemor ante a prosápia do malandrismo político.

O que em verdade se pode afirmar é que o nosso presente mal-estar tem origem longínqua, e jamais na ação decisiva, enérgica e continuada, intolerante - que é assim que a batizam - desse ou daquele dos raros homens que entre nós têm encarnado o poder, e é bem possível que, se Pedro II, ao invés de ler Renan e alisar a testa de mestre Benjamim, tivesse sido simplesmente um verdadeiro chefe da monarquia, consciente da obrigação que tinha de a defender a todo transe, é bom possível, repito, que, se a Federação hoje tivéssemos, ela não fosse esta de dois sobre dezoito, nem o seu espírito constitucional um simples fantasma de quartéis e jornais esfomeados...

Se no mundo europeu a formação dos partidos marcou a era do enfraquecimento das nacionalidades, verdade positiva, incontestável, é que, no Brasil, o desaparecimento dos partidos foi a causa mais séria do enfraquecimento geral dos caracteres dados à política, e, por isso, das não pequenas misérias de que já temos sido vítimas, assim como o aplainamento do terreno para misérias ainda maiores. Ora, nunca os partidos foram possíveis sem a intolerância dos princípios e a relativa intransigência dos homens, sem as quais não é possível vida moral, amor da verdade, e de tudo o mais que é sua conseqüência. Foi justamente o desaparecimento dessas condições de vida moral, que, entregando cada um a si mesmo fez a escravidão da maioria, e nem sempre aos mais dignos desse bastardo feudo. Não seja, pois, a tolerância o ideal das novas gerações brasileiras. Se estas se encontram no grau de inferioridade social, em que estão, devem-no, sobretudo, à inércia com que as gerações anteriores se escravizaram a dogmas da imaginação e do orgulho, traindo, ufanas, os do bom sendo e do patriotismo. A intolerância não é estupidez ou fúria cega. Não é mesmo digno de ser intolerante quem não sabe por que deve sê-lo, quem não sabe por que o é. Intolerância é amor da verdade, tanto da Suprema Verdade, como de qualquer verdade. É a face exterior da convicção, que por sua vez é a face interior da verdade, que, se não depende de nós para ser, só o é para nós quando a procuramos, a amamos, e sabemo-la defender.

Avalio como não sorrirá de mim, se me ler, o ilustre amigo que provocou estas considerações bem menos valiosas que as de Matias Aires em época de maiores vaidades e maiores brios. Mas que se há de fazer?

Já agora é certo que bem diversamente iremos ambos a lutar com o tempo, que não só destrói prodígios de intolerância como os de tolerância... "Pontuais na sepultura", como dizia Machado, não poderemos deixar de ser... E só depois de fechada sobre nós aquela porta, poderemos saber talvez quem de nós foi mais feliz e mais sábio.

Porque, é bom notar, não só de amarguras e desgostos vive a intolerância...
Tem seus dias!, como se diz lá para o Norte.

Jackson de Figueiredo

sábado, 5 de janeiro de 2013

Cinema: The Farmer's Wife (1928) e como encontrar a esposa ideal

Excelente e comovedora comédia muda onde se observa uma eficaz e cuidadosa postura em cena, e um ritmo de montagem ajustado que fazem com que este filme não envelheça em absoluto, mesmo após mais de oitenta anos de sua realização. É claro que Hitchcock já sabia o que fazia.

A história é simples: depois de enviuvar e ficar só devido ao casamento de sua única filha, um fazendeiro, ajudado por sua criada, começa uma busca por uma esposa. Seleciona quatro mulheres do lugarejo, uma pior que a outra: uma obesa viúva “independente”; uma feia com ataques de histeria que prefere continuar sendo solteirona; uma obesa infantil e instável; e a vulgar dona de uma taverna. O fazendeiro (James Thomas) é um homem nobre, elegante e bem tido, e mesmo assim é recusado pontualmente por cada uma das quatro candidatas, às quais o fazem passar por ridículo e perder seu próprio respeito. Finalmente, o fazendeiro acaba por descobrir que a única mulher que vale como mulher e esposa é sua criada Minta (Lilian Hall-Davies), a qual lhe dedicava um secreto e doce afeto.

A história em si não parece muito hitchcoquiana, porém já veremos o que ela traz. Está embasada em uma valiosa obra teatral de Eden Phillpotts, porém Hitchcock lhe agregou cenas verdadeiramente humorísticas, mas que ainda não perdem seu afeto (sobretudo se alguém vê o filme sem a inadequada música que os editores de vídeo adicionaram, que é mais própria de um drama obscuro do que de uma brilhante comédia como esta. Assim, sem música podemos apreciar melhor o filme, graças a Deus). As cenas em questão são aquelas onde participam os serventes (papel destacado para Gordon Harker), que acabam por serem tratados da mesma forma que os patrões. Quase todos os personagens são peculiares, e a festa que se nos mostra é verdadeiramente “a festa inesquecível” (referência ao filme ‘La fiesta inolvidable’ com Peter Sellers, de 1968, no Brasil conhecido como “Um convidado bem trapalhão”), um meio pelo qual Hitchcock se compadece em desfazer as aparências que os personagens querem apresentar, falsidade que nosso diretor gostava de derrubar, como também fazia na vida real, com suas famosas piadas. Porém, colocados fora deste quadro de situação, estão Minta, a criada do fazendeiro Sweetland, e o mesmo fazendeiro, que só faz ‘comédia’ involuntariamente quando se põe a cortejar torpemente as mulheres.
Sr. Sweetland e sua criada, Minta
E a propósito delas: “Como são as mulheres hoje em dia?”, pergunta Minta afinal, quando seu patrão regressa desconsolado, logo depois da última e cruel recusa. Pergunta que poderíamos nos fazer com maior razão, hoje. Pergunta que formulada por aquela mulher resulta em uma condenação inapelável ao resto das mulheres que não estiveram à altura das circunstâncias, indignas de serem esposas e, pelos mesmos egoísmos, indignas de serem chamadas mulheres. Recordamos a Santo Agostinho: “As esposas humildes seguem o Cordeiro mais facilmente que as virgens soberbas” (A Santa Virgindade 51, 52).

Minta é a única mulher com autoridade para dizer aquilo, pergunta que provavelmente passou também pela mente e coração atribulados de Sweetland. Claro que Minta disse isto com dor e tristeza, com verdadeira compaixão, essa que nasce do amor. E aqui, no descobrimento por parte do fazendeiro de que essa que sempre esteve ao seu lado, é quem deve ser sua esposa, e nesta mesma cena que lhe descobre, com a merecedora como símbolo deste lugar único de possessão e com as sobre-impressões que existem no pensamento do fazendeiro, neste momento se entende a serena visão do jovem Hitchcock, de quem sua criada então, Mary Condon, em sua casa de campo deu uma visão muito diferente da que levavam as estrelas do cinema: “Uma não desejaria conhecer um cavalheiro mais educado e mais bom católico também. Cada domingo ia à Missa no Seminário de São João em Wonersh, perto de Guildford” (cit. Por Donald Spoto em sua negligente biografia de A. Hitchcock). Uma espécie de fazendeiro, o jovem Hitchcock, que logo teria sua mulher.

Passemos ao tema dos olhares dos personagens. O olhar do fazendeiro se equivocou uma e outra vez. Sweetland esteve olhando e imaginando coisas, no terreno tão movediço e fantasioso do amor. Teve de passar por todo ele, e ao fim desenganar-se para se dar conta de que não havia visto o que buscava, que estava cego. Também devemos dizer que a forma que esta mulher, Minta, nos é revelada, acontece delicadamente através dos detalhes e sem necessidade de destacar o que por nós mesmos podemos ir construindo ao longo do filme. Penetração psicológica e comportamento desta mulher que já sabe o que é ser uma esposa ainda antes de chegar sê-lo. De caráter fiel e firme, serviçal e bondosa, diligente e simples, também bela, sabia administradora da casa e dócil a seu senhor, é verdadeiramente digna de ser chamada “the farmer’s wife”.

Então, ela, Minta, era mostrada como uma exceção ante o ‘mostruário’ feminino que se apresentava ao homem, que por sua própria boca se perguntava: “como são as mulheres hoje em dia?”, não pensemos o que hoje receberíamos como resposta. Tristemente a realidade nos diz sem a necessidade de intermediários. Como muito bem nos diz, ao final do filme: “E se alguém conhece à uma mulher com um coração mais bondoso, uma franqueza mais firme, e um caráter mais nobre, quisera eu conhecê-la.”

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Últimas palavras em público de Alfred Hitchcock

Últimas palavras em público do cineasta católico Alfred Hitchcock, na cerimônia de premiação da AFI em 1979

 
"Agradeço ao embaixador Jay, à rainha Ingrid, ao diretor Stevens e a meus companheiros deste estranho trabalho que é a “fabricação” de filmes. Há muito tempo me dei conta de que o homem não vive só de assassinato. Necessita afeto, aprovação, ânimo e –de vez em quando- boa e abundante comida.

Esta noite, todos vocês me deram três dessas quatro coisas, pois a angustia me estrangulou o apetite.

Me sinto realmente orgulhoso de receber o “Prêmio de Toda uma Vida” da AFI. Ainda mais quando este prêmio vem de meus amigos e colegas de celulóide. Ao final, quando um homem é reconhecido culpado de um assassinato e condenado à morte, sempre é agradável saber que a condenação é obra de um jurado de amigos e vizinhos... ajudados por um advogado incompetente.

Colocaria à prova sua resistência, e a minha, ao recitar os nomes dos milhares de atores, escritores, editores, câmeras, músicos, técnicos... banqueiros, expositores... e uma variedade de outros criminosos que contribuíram em minha vida.

Vou mencionar só quatro pessoas às quais devo o mais profundo carinho, inteligência, e ânimo, além de uma colaboração constante.

A primeira dessas quatro pessoas é a montadora de meus filmes, a segunda, a roteirista, a terceira, a mãe de minha filha Pat, e a quarta é a cozinheira que conseguiu os mais maravilhosos milagres em uma cozinha doméstica. E seus nomes são Alma Reville.

Se a linda Reville não houvesse aceitado, há 53 anos, um contrato para toda a vida –sem opções- como Sra. Alfred Hitchcock, o Sr. Alfred Hitchcock quiçá estaria esta noite neste lugar, mas certamente não em esta mesa, e sim como um dos garçons da sala.
Hitchcock e sua esposa Alma Reville
Compartilho minha recompensa com ela, como fiz com minha vida. Agora, deixa-me compartilhar algumas coisas com os jovens cheios de promessas que ganharam um título como membros da confraria Alfred Hitchcock graças a AFI. Quando tinha apenas 6 anos, fiz algo que meu pai considerou digno de castigo. Não recordo que transgressão era – à idade de 6 anos, seguramente não teve nada a ver com a criada-.

Bem, meu pai me enviou à delegacia de polícia na esquina com um bilhete. O policial em serviço o leu e depois me fechou em uma cela durante 5 minutos, dizendo: “Isto é o que acontece com os meninos maus”. Deste então não duvidei em fazer qualquer coisa para evitar ser arrastado e encarcerado.

A vocês jovens, minha mensagem é a seguinte: “Evitem a prisão!”.

Algum dia, quiçá, um de vocês estará neste lugar recebendo um prêmio AFI. É o que conseguem os meninos bons”.

Alfred Hitchcock

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O monge domador de animais


Muitos moços estariam prontos a matar o dragão nos bosques, como Siegfrield; mas, quanto se trata do dragão das suas más inclinações, não têm a paciência de lhe dar combate. Preferem renunciar a esse santo trabalho.

Uma noite, o abade de um mosteiro perguntou a um dos seus monges: “Que tens hoje?” – “Eu, respondeu o monge, como todos os outros dias, estive tão ocupado que minhas fracas forças nunca teriam bastado para isso, se não fosse o auxílio da graça divina. Todos os dias tenho de vigiar dois falcões, conter dois cervos, forçar dois gaviões a fazerem minha vontade, vencer um verme, domar um urso e tratar de um doente!”


- “Que é que estás contando?, interrogou o abade rindo. Tais trabalhos não se fazem no nosso mosteiro!” – “Assim é contudo, replicou o monge. Os dois falcões são meus olhos, que devo vigiar continuamente para que não se detenham em objeto proibido. Os dois veados são meus pés, cujo andar devo regrar, se não quiser que me conduzam pela senda do mal. Os dois gaviões são minhas mãos, que me cumpre forçar a trabalhar e a fazer o bem. O verme é minha língua, que precisa ser refreada cem vezes no dia para não ter conversas vãs e superficiais. O urso é o meu coração, cujo egoísmo e vaidade tenho que domar. E o doente é meu corpo, de que me cumpre tomar cuidado incessante, para que a sensualidade não se aposse dele.”

E aquele monge tinha bem razão. A luta contra os teus instintos desordenados assemelha-se ao trabalho do domador; e todos os que querem progredir o seu caráter devem entregar-se diariamente a esse trabalho... tu também, meu filho.

O jovem, que tem cuidado de se tornar homem de caráter, jamais desculpará os seus defeitos, dizendo: “Não há remédio, nasci assim, é a minha natureza”; porém trabalhará sem descanso em aperfeiçoar a sua alma... Repete, pois, a miúdo: se minha alma está cheia de animais selvagens, domá-los-ei! Não ficarei como nasci, virei a ser aquilo que quero ser!

Dom Tihamer Toth
O Moço de Caráter